13.03.2017 | Escada Para a Evoluir
Este artigo é de autoria do piloto de parapente e birecordista mundial em distância, Rafael Saladini.
- Em 2016 realizou 564 km de voo, em companhia dos pilotos, também recordistas: Samuel Nascimento e Donizete Lemos (Bigode).
- Em 2007, 461 km de voo, em companhia dos pilotos, também recordistas: Frank Brown e Marcelo Pietro (Cecéu).
- Filme Ciclos é um documentário brasileiro de média-metragem, dirigido por Rafael Saladini e Pedro Dumans. O filme conta a história do recorde mundial de distância percorridos no dia 14/11/2007 e que ganhou os prêmios de Melhor Júri Popular e Oficial no ano de 2009 - Mostra Internacional de Filmes de Montanhas e em 2010 ganhou o prêmio de Melhor Conquista Esportiva, no Les Icares du Cinema. Assista o filme aqui.
No texto de 2008, ele descreve sua trajetória no voo livre e compartilha humildemente alguns ensinamentos.
Escada para evoluir
Infelizmente o voo livre é um esporte de oportunidades, só se desenvolve aquele que tem oportunidade não só de voar, mas voar com os melhores pilotos e que saibam o que estão fazendo. Não existem autodidatas, que aprendem tudo longe de todos. Não adianta ter dinheiro, tempo e vontade apenas, é necessário controlar a ansiedade e buscar informações com quem sabe.
Quem quer aprender rápido, corra para as competições!
Quem não quer competir, muita calma nessa hora!
Um grande exemplo disso sou eu. Enquanto tive apenas vontade, recursos e tempo voei muito, mas não tenho nem coragem de listar as situações de perigo que me coloquei. Sempre tive meu primo Rodrigo Monteiro como meu orientador e conselheiro, mas minha ansiedade de acompanhá-lo e chegar ao topo do esporte rapidamente quase me custaram caro diversas vezes. Ansiedade pura.
Tive a sorte de aprender com um piloto que já tinha acesso aos melhores do Brasil. Com muita curiosidade e determinação, me alimentei de pequenas informações e observações que me foram passadas. Meu desenvolvimento talvez tenha sido o mais rápido entre os pilotos brasileiros da última década, tudo porque estive inserido num grupo seleto de pilotos que levam o parapente extremamente a sério, além de uma dedicação enorme da minha parte. Informações que eles demoraram anos para adquirir, me passaram ali, mastigado e em poucos campeonatos, e ainda assim sei muito pouco.
Enxergo a evolução dentro do esporte como um simples dia de vôo, cada dia é um dia, como cada piloto é cada piloto. Temos que nos adaptar dentro das nossas limitações, talentos e potenciais, não adianta querer andar mais rápido que o ciclo do dia, muitas vezes esperar o tempo passar significa chegar na próxima térmica justo no momento exato para subir.
O Brasil é talvez o melhor país do mundo para aprender a voar. Não somos obrigados a encarar as ''corredeiras'' perigosas dos Alpes, e muito menos as roubadas da África do Sul. Voamos o ano inteiro e temos ''ondas'' dos mais variados tamanhos para cada tipo de surfista. Cada região pode ser vista como um degrau na evolução, e assim existe uma escada que podemos montar, precisamos apenas entender o que cada uma significa para nosso esporte.
Sou do Rio de Janeiro e aprendi a voar em São Conrado e Petrópolis, só marolas. Tive a sorte de participar de competições pelo mundo afora e enxergar que voar era muito mais que dominar meu sitio de vôo, era preciso ter uma visão holística de como tudo funciona e assim poder voar com segurança em qualquer lugar. Uma busca que nunca termina. O Frank Brown, com 27 anos de vôo e aquele Pentium 58 que tem na cabeça, ainda busca isso.
Arrogância é um passaporte para a morte. Quem está a fim de aprender a voar XC, mas odeia competições, existe um caminho muito claro na minha cabeça, onde cada lugar representa um passo importante para a evolução. Não esquecendo de um ponto importante; apesar de São Conrado(praia) e Quixadá(sertão) serem lugares muito diferentes, cada um tem seus perigos e burro é aquele que não entende isso. Hoje tenho +1000 horas de vôo, mas se eu desmerecer o risco de São Conrado amanhã posso virar notícia de jornal. Vamos planejar melhor nossa evolução, nada de ansiedade.
Aprendi isso me explodindo como um tomate, na rampa de Andradas, aos 16 anos. Custaram-me 6 meses na cama e 3 anos de trauma, sem voar. A partir dai, voei de DHV 1/2*, durante 2,5 anos, depois voei 100 horas de puro XC, de DHV 2*, em Cambuquira, Sapiranga, Tangará, e até ensaiei um Araxá. Com 200 horas de vôo fiz meu primeiro 80km, mas não sabia absolutamente nada ainda. Peguei um 2/3 e fui para o Vale de Bravo, no México. Tomava tanta fechada que tomei um puxão de orelha do Frank: "Ou para com isso, ou volta pro dhv 2 cara! Desenvolva suas fraquezas ou simplesmente aceite suas limitações!"
(equivalência das velas no período em que o texto foi redigido: dhv 1-2 seria uma vela Prymus/Atmus, dhv 2 seria uma vela Synergy, dhv 2-3 seria um Mantra)
Foi ai que resolvi investir pesado, pegando outro 2/3*, e percebi que faltava muito ainda pra ser um bom piloto. Decidi passar meses em Araxá-MG, respirando tudo o que os mestres locais do XC me passavam. Bruno Newmann, Branco, Du, Nasser e Caio Porfírio, as pessoas que formaram a minha base de XC. Total de umas 250 horas de 2/3, foram o início de uma jornada. Foi ali que fiz meu primeiro 200km. Foram inúmeros 150km, em Governador Valadares, Jaraguá e outros. Considero Araxá como a melhor opção para aprender a voar XC, numa condição que pode ficar perigosa, mas que em média aceita muitos erros. Um grande começo para quem quer aprender a voar no ventão.
Quem nunca voou no cerrado, ou nunca pegou um Tangará-SC, Cambuquira-MG clássico, ou não soube aproveitar a condição, para que voar no Sertão?
De Araxá, fui investir em Brasília e Jaraguá-GO. Para mim o cerrado goiano é o segundo grande passo para aprender a voar XC em condições extremas. A idéia de voar em roubada e lugares que podemos virar lenda começa a ser mais presente daqui em diante.
A potência do vôo em Brasília, a decolagem de Jaraguá, BAGAGEM.
Se viajar para vários lugares é um problema, eu investiria em BH. Lugar forte, técnico e que ensina muito para qualquer piloto.
Somente depois de acumular muitas horas de vôo nesses 3 lugares, no cerrado, foi que resolvi investir nas ondas gigantes do Sertão. Mesmo assim, cheguei em Patu - 2006 completamente cru (450 horas de vôo). André Fleury me ensinou a decolar de novo em condição de ventão. Voei de Synergy 2 no começo, até me adaptar ao lugar. Depois de uns 20 dias em Patu foi que o Cecéu resolveu me ensinar a voar 300 km, me dando a mão até os 324 km. Com essa postura conservadora fui ganhando uma confiança muito sólida nas minhas decisões, e no final da temporada mandei um 338 km e 370 km completamente sozinho. Um sonho que sempre tive.
Mesmo assim, em 2007, ainda no avião indo para Fortaleza, me questionei muito sobre voar com a minha primeira vela de competição no sertão. Questionamento que não me deixou dormir a primeira noite, mas a minha base histórica era tão boa, tão sólida, que logo no primeiro vôo quebrei o sulamericano com 397 km. Depois vieram mais vôos gigantescos inesquecíveis.
Dropar as ondas grandes de Quixadá pode parecer inicialmente fácil, é como voar vela de competição, onde tudo é uma maravilha até ela começar a fechar e a girar. Para a nossa sorte, Quixadá tem muito vento, caso contrário seria praticamente impossível voar ali. A capacidade do sertão em acumular calor na sua vegetação e relevo é uma das maiores do mundo, e o vento serve como um moderador, organizando os ciclos e não deixando o calor se acumular demasiadamente num local, para depois subir a 55m/s, totalmente over. Isso é uma regra somente em zonas expostas ao vento, o que não é o caso dos rotores, que desprendem o calor de forma extremamente desorganizada e em bolhas de diferentes intensidades que passam a serem zonas mortais em qualquer hora do dia, a vela de competição ali começa a girar.
Aprender a navegar na região tem dois jeitos: buscar com quem já sabe (foi o que eu fiz), ou o puro empirismo (pode ser perigoso). Em ambas escolhas o piloto já deve ter uma bagagem grande de situações adversas. Nosso esporte NUNCA é uma ciência exata e por isso eu enxergo hoje com uma nitidez muito profunda que não adianta ser ansioso. Temos primeiro que ter consciência do nível em que estamos, para depois entender o que de fato queremos do esporte, assim fica muito mais fácil visualizar a escada e saber aonde voar e como voar.
Cada lugar tem um potencial e investir num local acima das suas habilidades significa que você não foi capaz de visualizar a escada ou não foi capaz de controlar a própria vaidade.
Hoje passo por um grande teste; o teste da vaidade. Sou recordista mundial com 25 anos e 5,5 anos de vôo, tenho freqüentado o circuito mundial, com todos os melhores pilotos do mundo me enaltecendo pelo feito, meu ego sobe junto comigo a cada bomba para estratosfera e a cada pisada no acelerador, mas até agora tenho controlado muito bem o tal complexo de superman que sempre surge de tempos em tempos. Tive como grande lição o ultimo PWC (Campeonato Mundial de Parapente) na Espanha, com a morte de um amigo russo (voava no Himalaya), 5 pilotos com vértebras quebradas, dois com costelas e braços, 14 reservas e eram os melhores do mundo ali. Foi quando me perguntei:
O que eu quero desse esporte?
Dependo dele pra viver?
Para que jogar no buraco e acelerar daquele jeito na chegada de goal?
Para ganhar um tapinha nas costas?
Quais são as minhas prioridades?
Voo livre a qualquer custo?
Não...
Eu vôo porque gosto. Não vou pro Himalaya voar amanhã, porque sei das minhas limitações. Não tenho habilidade pra voar lá ainda. Gostaria, mas seria começar tudo de novo, e isso seria um novo longo capítulo, lá pela Índia, na minha história de voador.
Bons vôos,
Rafael Saladini
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